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“Já sabem do seu furo no imposto de renda”

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Por Dênerson Rosa

Diz-se que o homem que nasceu há 10 mil anos atrás teria cochichado no ouvido de um notório mafioso “já sabem do teu furo, meu nego, no imposto de renda”. Pelo jeito, o tal mafioso não levou isso muito a sério e acabou preso: 8 anos em regime fechado e 3 anos no semiaberto.

Antes disso acontecer, o FBI (polícia federal americana) passou anos tentando, sem êxito, responsabilizar criminalmente o tal mafioso, que tinha um histórico delituoso bem grande: (i) vendas de bebidas alcoólicas (e pensar isso já foi crime!), (ii) jogos ilegais, (iii) agiotagem, (iv) extorsão, (v) tráfico de drogas, (vi) cafetinagem, (vii) assaltos, (viii) furtos, e pelo menos uns (ix) 70 assassinatos.

Quando tudo parecia perdido para o FBI, alguém teve a ideia de pedir para que alguns contadores (auditores fiscais) do governo americano analisassem livros e documentos apreendidos em operações policiais e “Eureka”: Eis que se descobrem elementos que permitiam responsabilizar o mafioso Al Capone por 22 crimes fiscais.

Se Al Capone fosse um mafioso suíço, a coisa seria um pouco mais difícil para a Bundesamt für Polizei, a polícia federal da Suíça. Neste país, sonegação fiscal é apenas ilícito administrativo, sujeito a multas e sanções cíveis, sem nenhuma tipificação penal. Lá, ou se prende por crimes de verdade, ou nada feito.

No Brasil, deixar de pagar tributos sempre foi um ilícito administrativo, sujeito a multas (às vezes bastante onerosas), mas nunca foi crime.

Isso começou a mudar em 1969, quando foi publicado, aqui, o Decreto-Lei nº 1.060, que criou a figura da prisão administrativa para quem deixasse de pagar tributos, e que o STF rapidamente julgou inconstitucional, mas não sem dar tempo do então Ministro da Fazenda (Delfin Neto) conseguir prender alguns empresários.

Até parece ironia, mas nos anos 90, quando o nosso país aderiu à Convenção Interamericana de Direitos Humanos (aquela que estabelece ser incabível prisão por dívidas), aprovou também uma lei (nº 8.137) a qual criminalizou o não pagamento de tributos em diversas situações.

A partir de então, vigora no Brasil o seguinte contrassenso: (a) ter dívida de tributos não é crime; (b) praticar ato que crie a dívida fiscal, isso sim é crime; (c) se a pessoa conseguir pagar a dívida, deixa de existir o crime.

Se a lei criminalizasse apenas situações realmente graves, até haveria algum sentido, mas a lei define como crimes atos como: (a) inserir informação inexata em documentos ou livros fiscais; (b) omitir operação de qualquer natureza em documentos ou livros fiscais; (c) preencher, entregar, ou até mesmo usar documento fiscal com informação inexata.

Que tipo de inexatidão, em documento, caracteriza crime? A lei não define. Ou seja, tal definição cabe aos membros do Judiciário. Mas pessoas diferentes, olhando o mesmo fato, podem ter visão bastante diferentes.

Em matéria penal, essa subjetividade é muito ruim. Afinal, alguns podem ser condenados por pouco, enquanto outros, tendo praticados atos bem mais graves, são absolvidos. E isso apenas porque estavam sendo julgados por pessoas que tinham forma bem diferente de olhar para a mesma lei e sua vaga e subjetiva redação.

Se está parecendo absurdo, fica ainda pior. Em matéria tributária, tem sido recorrente a aplicação, pelo Judiciário, da teoria do domínio do fato. Ou seja, erros e irregularidades fiscais em uma empresa só aconteceriam com o conhecimento e participação dos seus administradores.

E o cenário ainda piora um pouco mais quando se inclui a peculiaridade da nossa legislação tributária, a qual reconhecidamente é das mais confusas, complexas e voláteis do mundo. Neste departamento, eu não conheço nenhum país que faça minimamente sombra ao caos que temos por aqui.

A Legislação tributária brasileira é desconexa, mal redigida e alterada o tempo todo. Parece até natural que volta e meia seja descumprida até sem querer. Mas isso é perigoso, sob risco dos administradores (empresários ou executivos) virem a responder por crime fiscal, simplesmente porque se presume que teriam ou deveriam ter conhecimento. Isso é um tanto absurdo, chegando a ser kafkiano. Para quem não conhece a expressão, refere-se ao escritor alemão Franz Kafka, em cujo livro O Processo narra a saga de uma pessoa (Joseph K) que é acusada, e ao final condenada, sem que consiga entender sequer do que está sendo acusada, ou qual crime teria praticado.

Decididamente, o Brasil não é para iniciantes. Empreender no Brasil, então, só para os muito corajosos. Mas poderia ser pior. Pensa se o Ministro da Fazenda ainda pudesse mandar prender qualquer qualquer um que tivesse sido acusado (e autuado) de não pagar impostos? Consigo até imaginar a cara de felicidade do Haddad.

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Dênerson Rosa

Advogado, 28 anos de experiência na área tributária, pós graduado em Direito Tributário e Processo Tributário, ex-auditor fiscal de tributos do Estado de Goiás.

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