Fábio Izidoro *
O Projeto de Lei 4.162/2019 (Lei 14.026/2020), popularmente conhecido como Marco Legal do Saneamento foi sancionado, com onze vetos, pelo Presidente Jair Bolsonaro no último dia 15 de julho de 2020.
Antes de adentramos opinativamente nos vetos mais importantes, faz-se necessário ressaltar o chamado “espírito do legislador” ao propor referida norma. O objetivo primordial do Marco do Saneamento é, senão, a universalização dos serviços de saneamento básico – fornecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo adequado de resíduos sólidos, entre outros – para toda população brasileira, uma vez que, o ordenamento jurídico e o modelo de exploração atuais, notadamente, não contribuem para tal universalização.
Segundo informações do Instituto Trata Brasil, baseadas no Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento: 16,38% da população brasileira não tem acesso a água; 46,85% não dispõem da cobertura da coleta de esgoto; 46% do volume gerado de esgoto no país é tratado.
Nesse cenário, os principais vetos foram:
Veto aos §§ 6º e 7º do art. 14: “§ 6º Os entes públicos que formalizaram o contrato de programa que decidirem pela não anuência à proposta de que trata o § 2º deste artigo poderão assumir a prestação dos serviços, mediante a indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados, que tenham sido comprovadamente custeados pelo lucro ou por empréstimos tomados especificamente para esse fim, lançados em balanço pelas empresas prestadoras do serviço, na forma prevista no art. 36 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. No § 7º A comprovação referida no § 6º deste artigo deverá ser feita mediante apresentação de documentos contábeis que possibilitem a verificação de que os referidos investimentos não foram custeados exclusivamente pela receita proveniente da cobrança das tarifas dos usuários.”
Em linhas gerais, todo o investimento feito por Concessionário de serviços públicos, é “devolvido” (indenizado) pela tarifa até o final do seu prazo de concessão. Ocorre que investimentos feitos ao longo da concessão, podem não ser integralmente “devolvidos” até o termo final destas, em razão dos prazos legais de depreciação e amortização dos ativos, assim, é possível que, ao final da concessão, haja um valor a ser pago ao Concessionário por esse investimento feito no decorrer do contrato de concessão e que, não foi devidamente “devolvido” pela tarifa.
Do ponto de vista da segurança jurídica, nos parece importante o veto, já que a Lei de Concessões (Lei 8.987/95) em seu artigo 36 prevê a indenização dos bens reversíveis não amortizados ou depreciados, sendo que, a nova redação proposta pelos §§ 6 e 7 do artigo 14 ensejaria eventual discussão em razão de atrelar a indenização à comprovação do custeio do investimento pelo lucro ou por empréstimo.
Outrossim, esse tema foi reiterado no Marco Legal pela inclusão da indenização de investimentos não amortizados ou depreciados no parágrafo 5º do artigo 42 da Lei 11.445/2007 (Lei das diretrizes nacionais para o saneamento básico).
Veto ao artigo 16 – “Art. 16. Os contratos de programa vigentes e as situações de fato de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por empresa pública ou sociedade de economia mista, assim consideradas aquelas em que tal prestação ocorra sem a assinatura, a qualquer tempo, de contrato de programa, ou cuja vigência esteja expirada, poderão ser reconhecidas como contratos de programa e formalizadas ou renovados mediante acordo entre as partes, até 31 de março de 2022.
Parágrafo único. Os contratos reconhecidos e os renovados terão prazo máximo de vigência de 30 (trinta) anos e deverão conter, expressamente, sob pena de nulidade, as cláusulas essenciais previstas no art. 10-A e a comprovação prevista no art.10-B da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, sendo absolutamente vedada nova prorrogação ou adição de vigência contratual.”
Considerando que aproximadamente 6% da população brasileira é atendida por empresas privadas de saneamento, o veto ao artigo 16 atinge principalmente as empresas Estatais.
Tal veto gerou intenso e desproporcional ruído político, inclusive com promessas de derrubadas deste veto, sob o argumento de que, ao não se permitir a renovação dos contratos atuais, se estaria diminuindo o valor de mercado dessas empresas e consequentemente o poder de arrecadação dos Estados e Municípios em eventual “desestatização”.
O fato é que, o objetivo principal do Marco é a universalização dos serviços e, permitir – note que não havia garantia de que os contratos seriam prorrogados, mas sim a mera possibilidade – que os contratos hoje existentes se prorroguem por até mais 30 anos, nos parâmetros atuais de prestação de serviços, não contribui com a universalização objetivada.
Não obstante, os próprios artigos 10 A, 10 B e 11B propostos pelo Marco para a lei 11.445/07, regram que as empresas com contratos vigentes precisam, para renovação destes, comprovar capacidade econômico-financeira para o atendimento da universalização, o que não se verifica na maioria das empresas Estatais, desarrazoando ainda mais os argumentos políticos.
Nesse sentido, nos parece bastante positivo o veto pois vai ao encontro do objetivo maior do Marco que é a água, saneamento, limpeza urbana e manejo de resíduos ambientalmente adequados a todos os brasileiros, o que só será viável com o rápido aumento da concorrência na prestação desses serviços.
Veto ao artigo 20 – “Art. 20. Aplicam-se apenas aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário os seguintes dispositivos:
I – da Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, o § 8º do art. 13;
II – da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007:
a) o art. 8º;
b) o art. 10;
c) o art. 10-A.”
O artigo em referência excluía os serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos do novo regramento, sem qualquer justificativa aparente para tanto, em que pese tais serviços também figurarem dentro de um contexto geral de Saneamento Básico e possuírem importante viés Ambiental.
Desde a promulgação da Política Nacional de Resíduos Sólidos em 2010, há prazo para que os Estados e Municípios apresentem planos de resíduos e soluções para a disposição adequada destes, de forma que, o veto ao artigo 20, iguala em condições de contratação os serviços de limpeza e manejo de resíduos aos de saneamento, impulsionando também esse setor através da ampliação da competitividade.
Em que pese o trâmite legislativo que se avizinha com a deliberação pelo Congresso Nacional aos vetos Presidenciais, por fim, é importante refletir se este Marco Regulatório atingirá um de seus objetivos que é criar ambiente regulatório satisfatório para incentivar o setor de saneamento a atingir a universalização.
Nas condições econômicas existentes, o fomento da infraestrutura, que é importante mola propulsora da economia nacional, passa pela participação do capital privado, que “exige” do poder Público um ecossistema favorável baseado nos seguintes pilares:
(i) Segurança Jurídica (Marco Regulatório + Regulamentação + Agência Reguladora Moderna);
(ii) Bons Projetos (Boa Engenharia + Taxa de retorno atrativa);
(iii) Capital (R$ Disponibilidade + Baixo Custo);
O Marco Regulatório do Saneamento é importante instrumento de segurança jurídica e os vetos presidenciais reforçam esse objetivo, todavia, é de suma importância que seja regulamentado rapidamente e de forma adequada.
A Agência Reguladora é outro importante elo na construção do ecossistema ideal à atração do investidor privado, de forma que é preciso prover uma Agência Reguladora, moderna, equilibrada entre a tecnicidade e o povoamento político e que também tenha como cultura e propósito organizacional a universalização do saneamento.
De certo que, estamos próximos de consolidar um excelente primeiro passo a fomentar importantes melhorias no saneamento básico no Brasil com a promulgação do Marco do Saneamento, todavia, há ainda, um longo caminho a percorrer para a almejada universalização.
Fábio Izidoro
Sócio da área de infraestrutura do Miguel Neto Advogados