Por Izabella Pavetits
“Consumidores, por definição, somos todos nós”. Feita em 1962 pelo ex-presidente dos EUA John Kennedy, a afirmação deu início ao discurso considerado como o marco inicial da percepção de que as instituições públicas têm a responsabilidade de proteger os consumidores. No Brasil, essa noção foi consolidada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), a Lei Federal nº 8.078/1990, que completa 35 anos em 2025.
Coordenadora da área de Meio Ambiente e Consumidor do Centro de Apoio Operacional (Caomac) do Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO), a promotora Daniela Haun faz coro ao preceito. “Defender o consumidor é defender todos os cidadãos. Nós somos consumidores o tempo inteiro e precisamos, sim, dessa proteção”, sublinha.
Nesse sentido, Haun defende que o CDC é um marco civilizatório que nasceu do ideal de justiça social. “Ele proclama o princípio de que o lucro não pode estar acima da pessoa.” Segundo ela, trata-se de mais do que um conjunto de normas, é uma conquista democrática que colocou a dignidade humana no centro das relações de mercado.
A defesa do consumidor por parte do Estado é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal, lembra o coordenador da Escola Estadual de Defesa do Consumidor da Superintendência de Proteção aos Direitos do Consumidor de Goiás (Procon Goiás), Henrique Teixeira.
O ordenamento jurídico, acrescenta, entende os que compram como a parte mais vulnerável da relação. “Sem o mesmo conhecimento técnico, poder econômico ou jurídico do fornecedor, exigindo, desse modo, a proteção do poder público para que seus interesses e segurança sejam garantidos”, explica.
A advogada Ana Thalia Cascalho endossa os argumentos e, ao classificá-lo como um “divisor de águas”, diz que há motivos para comemorar o 35º aniversário do CDC. “É celebrar os avanços concretos, a consolidação de uma cultura de respeito ao indivíduo e a construção de um modelo jurídico que, hoje, é referência internacional em equilíbrio nas relações de consumo”, justifica.
Entre as principais conquistas, ela cita a evolução institucional que o código impulsionou, a qual resultou em um sistema de defesa interorganizacional “robusto, articulado e cooperativo”, com atendimento presencial e on-line em todo o País. Além disso, a construção de uma maturidade social dos próprios cidadãos, o que consolida a legislação como um instrumento de cidadania.
Do individual ao coletivo
A promotora Daniela Haun afirma que há toda uma rede pública de proteção ao direito do consumidor. Inicialmente, expõe, um problema na relação de consumo tende a ser uma questão individual. A orientação é primeiro tentar resolver diretamente com a empresa, mas, se o esforço não for bem sucedido, o próximo passo é levar a demanda aos canais oficiais.
“Quando se acumulam várias denúncias particulares sobre o mesmo tema, ultrapassa-se a violação restrita e torna-se um atentado à coletividade. E é nesse momento que MP-GO entra em ação para garantir os interesses da população”, elucida Haun. A coordenadora do Caomac cita como exemplos casos de publicidade enganosa, fraudes, práticas abusivas, todas com danos de grande repercussão social.
“É uma parceria que deslumbra a união de esforços para proteger o cidadão, fortalecer essa confiança e garantir que o mercado exista para servir as pessoas e não o contrário”, conclui Daniela Haun.
A advogada Ana Thalia Cascalho ecoa o entendimento de que as ações integradas entre os órgãos públicos são fundamentais para garantir a efetividade do CDC, especialmente em um cenário cada vez mais digital e complexo.
“Em Goiás, essa atuação ocorre de forma cooperativa entre o Procon Goiás, a Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Consumidor (Decon), o MPGO, além de outros órgãos que integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), atuando de maneira conjunta com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon)”, aprofunda.
Essa integração, explana Cascalho, permite a troca de informações, a padronização de procedimentos e a execução de ações coletivas de fiscalização, educação e repressão, ampliando a efetividade na proteção do consumidor.
Henrique Teixeira, do Procon Goiás, informa que o órgão atua em três frentes: atendimento aos consumidores que buscam por uma resolução favorável de seus conflitos; fiscalização, que ocorre como resultado de denúncias recebidas ou de ofício pelo próprio órgão, e educação, oferecendo informações tanto para as pessoas quanto para as empresas.
O coordenador da Escola Estadual do Procon Goiás prossegue: na primeira linha de ação, o serviço pode, inclusive, gerar sanções contra a empresa, caso haja indícios de práticas infrativas em sua conduta.
E, durante a segunda, os agentes visitam diversos estabelecimentos para verificar se há alguma infração no fornecimento dos produtos e serviços. “Frente a alguma conduta insatisfatória, os fiscais podem desde orientar, até aplicar medidas cautelares, tudo de acordo com a gravidade do que for constatado”, finaliza.
Teixeira conta que o trabalho conjunto com outros órgão é rotineiro no Procon Goiás. “Essas parcerias são de grande importância, pois elas permitem uma troca de informações entre os diferentes agentes e a responsabilização dos infratores nas diversas esferas possíveis”, acredita.
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos do Consumidor da Assembleia Legislativa de Goiás, o deputado Veter Martins reforça a relevância da parceria interinstitucional. Para facilitar que a sociedade conheça o CDC e a legislação estadual correlata, a Casa de Leis lançou um compilado gratuito, disponível aqui.
“Quando todo mundo trabalha junto, o Procon, o Ministério Público, a Defensoria, o Parlamento, quem ganha é o consumidor. Sozinho, nenhum órgão dá conta de tudo. Em rede, a gente troca informações, age mais rápido e protege melhor o cidadão”, opina Martins.
O MPGO pelos interesses comuns
E quando o desrespeito ao CDC ultrapassa o âmbito individual e passa a prejudicar a coletividade? Segundo a promotora Daniela Haun, é aí que se encontra o coração do dever do MPGO.
“O Ministério Público tem esse foco de garantir um mercado de consumo mais ético, transparente e sustentável. E isso vai ser um alicerce para garantir uma economia saudável e uma sociedade justa”, discorre.
No âmbito do MPGO, as promotorias de Justiça especializadas na área são a 12ª e a 70ª. Nessas unidades, recebem-se as notícias de fato, as reclamações, as denúncias, além de ser também onde estão os promotores agem na execução, na atuação (judiciais e extrajudiciais, também a partir de inquéritos civis, de investigação, ou de acordos que são firmados com instituições).
Até o início de novembro deste ano, segundo informações divulgadas pelas respectivas assessorias, a 12ª Promotoria propôs cinco novas ações civis públicas. São casos como o do frigorífico que colocou um cartaz discriminatório com objetivo de restringir acesso ao estabelecimento com base em posições políticas. Além de lidar com questões extrajudiciais, principalmente no âmbito do relacionamento entre planos de saúde e os seus beneficiários.
Enquanto isso, a 70ª responde por 12 novas ações, a exemplo das referentes às empresas WePink e Amazon Brasil. Há cerca de 90 autos extrajudiciais ativos, sendo: 52 notícias de fato; 33 inquéritos civis; e os demais, são procedimentos administrativos
“E não é só punir, mas também buscar prevenir e corrigir condutas, estimulando as empresas e as instituições a adotarem práticas conforme o CDC”, observa Haun.
Em regra, conta a promotora, as notícias chegam pelo cidadão, por meio de canais como o MP Cidadão ou por relatórios encaminhados pelo Procon ou outros órgãos. Então, analisa-se cada caso conforme a sua respectiva peculiaridade, a fim de verificar se a situação cabe nas competências do MPGO.
Para auxiliar nessas atividades das promotorias, o Caomac do MPGO oferece suporte técnico e articula o alinhamento institucional e a cooperação interinstitucional para uniformizar o trabalho, consolidar enunciados e garantir esforços coerentes.
A promotora Daniela Haun, que coordena o centro, acrescenta que há o compartilhamento da expertise para que se crie uma rede de apoio tanto interna quanto externa. Para ilustrar, ela aponta o Projeto Consumidor Cidadão, trabalho com o Procon Goiás para fomentar a criação e a estruturação de Procons municipais pelo Estado.
Pessoas, não números
Em 15 de maio de 2025, a Unimed Goiânia anunciou, de forma unilateral, o descredenciamento de três clínicas especializadas no atendimento a crianças diagnosticadas com o transtorno do espectro autista (TEA). A exclusão valeria a partir do dia 30 de junho deste ano.
Os planos de saúde têm autorização legal para trocar os profissionais e clínicas de suas redes, desde que forneçam alternativas para que o tratamento continue com o mesmo padrão de qualidade. Nesse caso, entretanto, há particularidades.
Por fatores como rigidez cognitiva, as pessoas autistas precisam de previsibilidade e têm dificuldade para criar vínculos e se adaptar a novos profissionais. Assim, a substituição dos profissionais da saúde, principalmente de forma repentina e com pouco mais de um mês para preparar os atendidos, poderia causar prejuízos significativos ao processo terapêutico, o que preocupou muitas famílias.
É o que explica a presidente da associação Mães em Movimento pelo Autismo (MMA), Letícia Amaral, que organizou as articulações de protestos da comunidade e de acionamento das autoridades defensoras dos direitos dos consumidores e das pessoas com deficiência (PCDs).
“A minha vida parou, mas não foi apenas a minha. Foram as vidas de mais de 300 famílias de autistas. Nossos filhos não são estatística, por trás desses números, existem nomes, com uma história única, com pais desesperados, que ficaram completamente sem chão”, recorda. De acordo com o grupo, as demais clínicas da rede credenciada não teriam estrutura ou vagas suficientes para absorver, de uma hora para a outra, a demanda extra.
“Encontrei muitos omissos, calados diante de tanta injustiça. Mas, nestes dias, eu vi o promotor de Justiça do MPGO Élvio Vicente chorar conosco, sentindo todas as nossas dores e brigando pelo direito do consumidor de crianças e de PCDs de forma incansável”, revela a presidente da MMA.
A partir da articulação de Vicente, o MPGO firmou, em 6 de junho, um termo de ajustamento de conduta (TAC) com a Unimed Goiânia. O documento assegura a manutenção, no prazo máximo de um ano, de terapias para pacientes com TEA e outras condições atípicas que já estivessem sendo atendidos nas referidas clínicas antes credenciadas, o que busca proporcionar uma transição humanizada.
As unidades de saúde optaram pela rescisão contratual e se comprometeram a manter os atendimentos atualmente em curso pelo período solicitado, sendo vedada a inclusão de novos pacientes.
Consumidores autistas
A relação do MPGO com o MMA começou há três anos, quando o grupo se reuniu com promotores de Justiça para que o órgão pudesse entender os desafios vivenciados pelas mães de crianças autistas.
Na ocasião, Amaral elencou os principais entraves na garantia do direito à saúde, todos entrelaçados com questões relativas ao direito do consumidor. Foram eles: a escassez de profissionais qualificados que tenham vínculo com os planos de saúde, o que gera listas de espera extensas; a alta rotatividade desses mesmos especialistas; a remuneração inadequada oferecida aos prestadores de serviço e clínicas credenciadas, além da redução no tempo das sessões de tratamento.
“O Ministério Público abriu as suas portas para o MMA. E o nosso movimento talvez não teria chegado tão longe se nós não tivéssemos tido esse amparo”, emociona-se a presidente do grupo.
De lá para cá, a pauta da relação entre famílias atípicas e planos de saúde tem sido cada vez mais um dos focos da atuação do MPGO. Foram diversas ações propostas para garantir, por exemplo, o tratamento de crianças com TEA e de crianças com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) que moram em Jataí (GO) e são beneficiárias da Unimed Goiânia. Outro caso ocorreu em fevereiro deste ano, quando o mesmo plano de saúde estabeleceu uma junta médica para reavaliar as terapias prescritas às crianças autistas. A Justiça concedeu liminar ao MPGO.
A promotora Daniela Haun reitera, sob essa perspectiva, que defender o consumidor é garantir o equilíbrio social e construir uma sociedade mais justa e sustentável. “Essa causa da defesa das pessoas neurodivergentes na relação com os planos de saúde é uma bandeira que vem sendo desenvolvida há algum tempo e tem trazido conquistas importantes para essa grande parte da população”, considera. E completa: “Qualquer atuação do Ministério Público vai promover essa diferença na vida das pessoas”.
Coletividade que transpõe as fronteiras goianas
A atuação do MPGO na defesa dos direitos coletivos dos consumidores pode até ter foco em Goiás, mas, apenas em 2025, o órgão é responsável por três casos com possíveis efeitos e repercussão nacionais.
O caso mais recente é o da Savi Cosméticos Ltda, a WePink. A 70ª Promotoria de Justiça ajuizou uma ação civil pública contra a empresa, sua sócia e sócios: Virgínia Pimenta da Fonseca Serrão, Thiago Stabile e Chaopeng Tan.
O promotor responsável, Élvio Vicente, apontou que a marca, que vende cosméticos durante transmissões ao vivo (lives) nas redes sociais, acumula mais de 90 mil reclamações registradas somente em 2024 no site Reclame Aqui, além de 340 denúncias formais no Procon Goiás entre 2024 e 2025.
A investigação do MPGO levantou como práticas abusivas a falta de entrega de produtos; o descumprimento de prazos; a dificuldade de reembolso; o atendimento ineficiente ao consumidor; a exclusão de comentários críticos nas redes sociais e a entrega de produtos com defeito.
O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) concedeu uma liminar que restringiu a realização de lives até que a WePink comprove a regularização de todos os pedidos pendentes e a existência de estrutura adequada de atendimento ao consumidor. A empresa recorreu, mas o pedido foi negado.
Outro caso ocorreu em fevereiro. Trata-se da ação civil pública da 12ª Promotoria que questiona a prática de exigir valor mínimo para pedidos executada no aplicativo de entregas iFood, que conquistou sentença favorável do TJGO. A decisão reconheceu a exigência como abusiva, acolhendo o argumento do MPGO de que se trata de venda casada, prática vedada pelo CDC.
O estudante de gestão pública Matheus Godoy, que afirma fazer pedidos pelo iFood ao menos quatro vezes na semana, acredita que a exigência de um valor mínimo desestimula os consumidores. “Às vezes, queremos só um lanche mais barato e somos obrigados a gastar muito além do que desejaríamos para ter acesso a essa compra”, relata. Ele aprova a possível novidade, mas também demonstra apreensão. “Isso ser convertido em cobranças extras ao consumidores. Torço para que, se for o caso, o MPGO continue olhando por nós”, reflete.
O processo segue em tramitação e, caso a ação civil pública saia vitoriosa quando não couber mais recursos, o valor máximo permitido para o pedido mínimo será imediatamente baixado para R$ 30. A partir de então, sofrerá cortes de R$ 10 a cada seis meses até ser totalmente zerado. Se o iFood não cumprir esse cronograma, será multado em R$ 1 milhão para cada etapa descumprida.
Meses depois, em abril, a 70ª Promotoria acionou a Amazon Serviços de Varejo do Brasil Ltda., responsável pela Prime Vídeo, pela inserção de anúncios publicitários que interrompem a exibição de conteúdos audiovisuais filmes e séries durante a fruição do conteúdo contratados na plataforma de streaming, com cobrança adicional para retirada dos anúncios.
A Prime Video modificou sozinha os termos dos contratos e transformou planos que eram “sem anúncios” em planos “com anúncios”. De acordo com o promotor responsável, Élcio Vicente, a empresa pratica uma conduta abusiva e ilegal ao cobrar uma taxa extra de R$ 10 para restaurar a condição original de não exibir comerciais.
O TJGO suspendeu integralmente os efeitos da sentença recorrida até o julgamento definitivo do recurso apelatório [fase em que o processo está atualmente]. Nos argumentos apresentados ao recurso, o promotor defendeu, entre outros, que a mudança configura abuso de posição dominante no relacionamento já estabelecido e violação da boa-fé objetiva.
Independentemente dos resultados finais específicos, o MPGO reafirma o seu compromisso com o consumidor goiano, conforme a coordenadora do Caomac. “Um mercado que respeita o consumidor é um mais competitivo, mais ético, mais sustentável”, continua.
E arremata:
“O mercado se fortalece, as empresas crescem com credibilidade e o país avança também. Tudo está conectado e essa é a importância de proteger o consumidor, ele é necessário para o próprio equilíbrio da sociedade”.
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