Por Izabella Pavetits e Karine Rodrigues
“A existência de organizações criminosas é um risco à nossa democracia”, afirma o promotor de Justiça de Goiás e membro do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) Marcelo Borges Amaral.
Um estudo de 2024 da organização não governamental Esfera Brasil em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que o crime organizado no Brasil movimenta valores na ordem de bilhões de reais. “Organizações desse porte pressupõem infiltração no Estado, cooptação de agentes públicos, domínio territorial, disputa de espaço de poder e emprego de violência”, completa o promotor do Ministério Público de Goiás (MP-GO).
Paralelamente a isso, a transformação digital é uma realidade em cada vez mais áreas e nem todos seguindo essa tendência estão bem intencionados. O crime organizado também está a um clique de distância. No âmbito virtual, os cibercriminosos movimentam quantias inimagináveis e há agravantes: o dinheiro não tem nacionalidade, o destino é incerto e os crimes são complexos e difíceis de rastrear. Ainda de acordo com a Esfera Brasil, os criptoativos representam um mercado em constante expansão, movimentando de maneira ilícita cerca de US$24,2 bilhões.
Mas engana-se quem pensa que a criminalidade virtual só ocorre em camadas profundas da internet (deep e dark web), ou com grandes somas de dinheiro. Conforme aponta a edição 2024 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as mudanças tecnológicas têm proporcionado ao crime a transposição de fronteiras sociais e econômicas de modo cada vez mais rentável e inovador. O documento revela que há uma uma propensão de queda dos roubos e aumento progressivo de modalidades como estelionatos, golpes virtuais e furtos.
De grão em grão se forma um milhão
A analista de sistemas Sabrina Souza, é familiarizada com a internet e não costuma se arriscar quando o assunto é sua segurança digital. Mas como estava pagando bem caro pela anuidade do cartão de crédito de um banco tradicional, decidiu aceitar o convite de uma colega de trabalho para aderir ao Nubank. O convite foi prontamente aceito pelo banco primeiro banco digital do País e o cartão foi liberado com um limite alto e sem muita dificuldade, isso em 2017. Tudo ia bem, até maio de 2019, quando foram realizados dois pagamentos na Inglaterra e cobrado quase R$2 mil em contas de restaurantes, descritos na fatura. Sabrina contestou a conta no banco e provou que sequer tinha saído de sua cidade. “Eu não havia nem mesmo liberado o cartão para viagem internacional. Então, o banco cancelou a cobrança e emitiu um novo cartão que chegou em menos de 15 dias na minha casa”, diz.
Mas veio dezembro e, nos dias 21 e 22 daquele mês em 2019, foram feitas 17 compras online no cartão de crédito da analista de sistemas. Ela conta que olhou por acaso sua fatura no aplicativo do banco no dia 23 de dezembro. “Fiquei mais de uma hora contestando uma por uma das compras, que foram desde farmácia até pagamento de serviços pessoais. Todas as compras resultaram em quase R$ 6 mil reais e grande parte foi dividida em duas ou três vezes”, resume ela. A primeira parcela foi cancelada pelo Nubank, as demais foram cobradas da analista, mesmo provando não ter sido ela a debitar no cartão de crédito. O banco digital cobrou nas faturas seguintes, jogou o nome da analista no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e ela precisou entrar com ação na Justiça, para limpar o nome, para extinguir a dívida e cobrar também os danos morais.
Sabrina disse que depois de quase um ano, a decisão judicial saiu. O banco teve que isentá-la da dívida, tirou o nome da analista do SPC, mas não teve que pagar os danos morais. No entendimento judicial não houve danos morais e segundo a advogada da analista, a recusa da juíza foi porque não havia extrato impresso do SPC, sendo que no momento em que a analista entrou com ação, o mundo vivia uma pandemia e não havia serviços pessoais, quase tudo era feito via digital para não proliferar a Covid-19 e não causar risco a vida das pessoas. Um grande exemplo de que a legislação brasileira é para negócios físicos e não digitais. (A vítima preferiu não se identificar e o nome dela foi trocado).
Site falso
Foi necessária apenas uma vogal i a mais para que o gerente comercial Alencar Resende levasse um prejuízo de mais de R$500 ao adquirir uma parafusadeira pela internet. Ele caiu no golpe do site falso de uma grande, tradicional e confiável rede de varejo brasileira, que vendia a ferramenta que ele precisava por cerca de R$200 abaixo do que estava no mercado. “Não me pareceu uma oferta enganosa, pois o produto estava apenas cerca de 20% abaixo do valor cobrado em outras lojas virtuais. Resolvi comprar e só vi que tinha sido enganado quando paguei por pix o valor total e o pagamento foi direcionado para outra empresa que não era a Loja Americanas. O link do site era da Ameriicanas”, relata.
Logo depois de efetuar o pagamento foi que ele notou que havia um i a mais na url do site e, daí em diante, começou sua saga para reaver o dinheiro. A compra ocorreu há um ano e meio e a furadeira nunca chegou às mãos do comprador. “Voltei ao site e tinha informações sobre o envio do produto que nunca chegou. Fiz o boletim de ocorrência virtual para me resguardar, liguei no SAC da Americanas para saber se era uma loja parceira e me disseram que não havia nenhuma ligação. Não era daqueles sites que usam uma grande loja como marketplace”, explica.
Depois, conversando com conhecidos, Resende soube que o mais indicado ao comprar em grandes marketplaces é fazer as compras pelo aplicativo. Tentou ir ao banco do qual é cliente para tentar suspender o pagamento, mas não havia como, pois o pagamento por pix é imediato. Ficou no prejuízo duplo: sem dinheiro e sem parafusadeira. “Eu bloqueei a página, denunciei, mas de nada adiantou, vi que ela ficou funcionando por meses. É incrível isso, né? Porque milhares de pessoas são lesadas e ninguém faz nada contra. Ficou o aprendizado para ser mais atento, olhar os itens de segurança da página, dar preferência aos aplicativos, simular a compra antes de efetuar o pagamento e tomar todos os cuidados possíveis”, reflete.
Quadrilha de um homem só
O especialista em segurança digital e CEO da Nox5, Lucieliton Mundim, diz que a migração dos crimes do ambiente físico para o ambiente virtual cresce em ritmo vertiginoso e que, com o passar dos anos e com avanço da tecnologia, os golpes estão ficando maiores e mais sofisticados, principalmente depois do uso da inteligência artificial (IA) para o crime. “Hoje a pessoa posta por exemplo um vídeo de outra pessoa inclusive com a voz e a imagem. E há alguns outros tipos de crime onde o estelionatário nem precisa ser um hacker. Só para se ter uma ideia, na dark web existe um serviço chamado ransomware. Trata-se de um software de extorsão que pode bloquear o seu computador e depois exigir um resgate para desbloqueá-lo”, resume.
Mundim diz que grupos criminosos estão aliciando pessoas para distribuir esse tipo de arquivo malicioso e dando uma porcentagem do “resgate”, para o distribuidor do cyber vírus. O estelionatário entra de sócio, faz campanhas de sites falsos e cria formas de induzir o internauta a executar esse arquivo malicioso e fica com uma porcentagem do resgate. “O distribuidor nem precisa ser um hacker para ter acesso ao software poderoso, geralmente desenvolvido na Rússia, Índia, China e espalhar o crime pelo mundo. É um negócio muito rentável em que as transações são em criptomoedas, que é mais difícil de rastrear”, ressalta.
O especialista em cibersegurança diz que a falta de uma legislação específica no Brasil que verse sobre o mundo virtual faz com que, no País, ainda compense praticar esses crimes. Como no exemplo citado anteriormente pela matéria, em que Alencar Resende teve seu dinheiro furtado, não recebeu a mercadoria que comprou e nada foi feito com os donos do site falso.
“O crime digital e o estelionato digital ganharam uma proporção tão grande que a preocupação com o anonimato fica em segundo plano, pois há a certeza da impunidade. Daí os criminosos vão aplicando pequenos golpes, mas em um grande volume de pessoas que geram enormes somas de dinheiro”, ressalta.
Lucieliton diz que é necessário fazer o letramento digital no Brasil, pois grande parte dos cidadãos são muito suscetíveis aos crimes cibernéticos por falta de conhecimento básico sobre o funcionamento da internet. Segundo ele, os idosos são os que mais caem em golpes. “E o estelionatário sabe da dificuldade das pessoas em lidarem com o virtual e da falta de alguém que os oriente. Assim, apenas uma pessoa espalha uma praga como um ransomware para mil, duas mil pessoas, por exemplo, e eles caem. Nem é preciso fazer formar uma quadrilha, uma pessoa faz o estrago sozinha”, explica.
O advogado Rafael Maciel é especialista em cibersegurança e ressalta dois pontos em relação ao aumento no registro do estelionato virtual. O primeiro é não perder de vista que o crime de fraude eletrônica se trata de um novo tipo penal. Isto é, registros que antes eram classificados em outras naturezas delituosas passaram a ganhar uma categoria própria, trazendo à tona um fato que antes estava invisibilizado.
O segundo é que a migração cada vez mais intensa da vida para o ambiente cibernético acessado pelos smartphones se reflete diretamente no crescimento de golpes virtuais. “A lábia é muito importante para o estelionatário e, na internet, ele tem acesso a diversas informações pessoais das vítimas, o que torna o seu ‘trabalho’ de enganar o outro muito mais fácil”, diz.
Na visão de Maciel, não há fórmula especial para se proteger, o segredo é a informação. Do lado do usuário, é preciso estar sempre atento e, do lado das autoridades e da imprensa, é necessário conscientizar a sociedade.
Esse cenário de crescimento exponencial de crimes praticados em meios cibernéticos, vinculados ou não a grupos organizados, exige uma especialização das estruturas e procedimentos necessários para proteger a sociedade. Em Goiás, o Ministério Público do Estado (MP-GO) é uma das instituições que saiu à frente e está investindo para cumprir sua função social e compromisso com os cidadãos frente ao universo dos cibercrimes.
Inovação institucional
Vinculado ao Gaeco e instaurado há pouco mais de um ano, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Cibernético (CyberGaeco) faz parte das estratégias da gestão do MP goiano para otimizar o enfrentamento de questões complexas a partir da modernização do serviço à população. Coordenador geral do grupo, o promotor Rodney Silva reforçou que o combate à criminalidade virtual requer especificidades técnicas e servidores qualificados no assunto. O CyberGaeco tem abrangência por todo Goiás e atua de maneira integrada tanto ao Gaeco quanto à Coordenadoria de Segurança Institucional e Inteligência.
Também membro da unidade de investigação, o promotor Marcelo Borges Amaral detalha que a intenção é aprimorar a atuação institucional do MP-GO ao unir a expertise do Gaeco com as necessidades trazidas pelo combate aos cibercrimes.
“Estamos empregando uma força especializada e com recursos tecnológicos para atender essa nova perspectiva do crime organizado, que é o ambiente virtual”, completa Amaral.
A estreia do CyberGaeco ocorreu ainda no mês de outubro de 2023 com a Operação Perséfone, a qual apurou crimes cibernéticos cometidos por uma organização criminosa de atuação nacional. Na época, aproximadamente dez servidores públicos de Goiás e São Paulo, entre promotores de Justiça, membros da área de inteligência do MP-GO e policiais militares, investigaram um esquema especializado em invadir sistemas de informação de órgãos públicos em busca de dados pessoais para posterior comercialização para entidades que se dedicam a compilar e a vender dados de consumidores na internet.
Em sua mais recente ação, em julho de 2024, o CyberGaeco deflagrou a Operação DarkHolme e desarticulou uma rede de golpes online aplicados através do aplicativo WhatsApp que estava baseada em Goiás. Seis pessoas foram presas.
As investigações, que foram iniciadas pelo MP de São Paulo, revelaram que, sozinho, um dos suspeitos movimentou mais de R$3 milhões nos últimos anos. Dispositivos usados pelos criminosos chegaram a operar com 67 chips de DDD distintos em menos de 40 dias. Milhares de fotografias de alvos, que eram preferencialmente advogados e médicos, e contatos de seus familiares foram localizadas durante a operação.
Em entrevista coletiva à imprensa, o promotor de Justiça Fabrício Lamas Borges da Silva contou que havia pessoas responsáveis por organizar uma grade das possíveis vítimas. “Eles buscavam as pessoas cujos familiares seriam abordados, coletavam fotografias e faziam contato como se fossem o dono do telefone, mas que estivesse usando um número novo”, disse.
Lamas destacou ainda que alguns dos membros da organização criminosa já possuíam passagem policial pela prática de outros crimes.
“Hoje é mais fácil para um criminoso praticar um crime no celular do que pegar uma arma e ir para a rua, correndo risco”, analisou o promotor.
Evidências digitais
Com esse cenário de abrangência da criminalidade em meio virtual, uma discussão que ganhou atenção no meio do direito eletrônico é a produção de provas digitais. Tendo em vista a imprescindibilidade da técnica correta, o CyberGaeco do MP-GO desenvolveu o programa Materializador de Evidências Digitais e Informáticas (MEDI).
O software, de uso gratuito e exclusivo a órgãos estatais, foi apresentado oficialmente pela instituição no último mês de agosto. O MEDI tem como objetivo possibilitar a coleta de imagens, vídeos, áudios, textos e conteúdos da web (redes sociais, aplicativos de mensagens, sites, e-mails) como evidências passíveis de uso em investigações e processos judiciais.
A ferramenta simplifica o trabalho de agentes públicos a partir da união entre a criptografia de dados em códigos hash, conforme recomendado por jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e mecanismos de coleta de provas com cálculos automáticos de metadados. Ao funcionar de forma offline e sem banco de dados, o programa garante maior segurança das informações geradas.
Especialista em direito eletrônico certificado internacionalmente, o advogado Rafael Maciel destaca a importância do rigor na coleta e preservação de evidências no que se refere às atividades investigativas criminais ou cíveis por órgãos estatais.
“Hoje em dia temos a noção bem clara do quão fácil é manipular dados com o uso da tecnologia. O próprio STF não aceita capturas de tela simples como prova para relações cíveis, muito menos criminais”, conta Maciel. E complementa: “Uma informação colhida da internet precisa ser devidamente rastreável e verificável, justamente para evitar quaisquer questionamentos quanto à veracidade”, explica.
Em um mês de lançamento externo, o software desenvolvido pelo MP-GO ultrapassou a marca de 600 usuários em todo o País e já é adotado em todos os 26 Estados da federação, além do Distrito Federal. De acordo com a assessoria do CyberGaeco, o MEDI é amplamente utilizado por servidores das áreas de segurança pública a nível federal e estadual, incluindo agentes de polícia, delegados e promotores de Justiça de todas as unidades da federação.
O promotor Marcelo Amaral frisa que a atuação sobre a criminalidade virtual necessita de aperfeiçoamento. “Nós pegamos o que já existe no Código Penal e aplicamos aos crimes virtuais ou digitais, mas observamos que é um desafio”, aponta.
“Não estamos mais falando de futuro, é o presente em que vivemos, mas o MP-GO está atento a isso, os investimentos são relevantes tanto em pessoal quanto em treinamento, para a gente não ficar para trás”, encerra Amaral.
Uma entidade contra o crime
O combate ao crime organizado é uma adesão de várias mãos e várias cabeças tentando pensar à frente para combater as mentes criminosas. Em Goiás, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) que integra o Ministério Público de Goiás foi criado em 2009, ainda sob a alcunha de Grupo de Repressão ao Crime Organizado (GRC). Em 2013 houve a mudança de nomenclatura para Gaeco. Em todos os Estados do Brasil há um Gaeco junto aos MP-GO e especializados na matéria que é o combate ao crime organizado. “Nós investigamos exclusivamente a área criminal voltada para o crime organizado”, explica o Promotor de Justiça, Marcelo Amaral.
Sete promotores fazem parte do Gaeco Central, que fica em Goiânia. Há outros dois Gaecos, o da Região Sul do Estado e o Gaeco do Entorno de Brasília, que são responsáveis pelas investigações nessas regiões do Estado. As principais funções do Gaeco dentro do Ministério Público são: instaurar, presidir, conduzir, investigar ações criminais relacionadas a organizações criminosas, que são resultadas da união de pessoas com o propósito criminoso. Essas investigações são mais complexas, exigem mais recursos humanos, materiais e financeiros. “Não é como investigar um crime comum, um furto, um roubo. Exige muito mais tecnologia, informação e especialização. Nós também trabalhamos integrados com a Polícia Penal, Polícia Civil e Militar”, afirma Amaral.
O promotor explica que organizações criminosas do porte de um PCC ou CV, que possuem ramificações internacionais, pressupõe infiltração no Estado e em vários âmbitos sociais que exercem algum tipo de influência. “Esses são alguns dos motivos que as tornam uma ameaça ao Estado Democrático de Direito. Uma ameaça que muitas vezes a disputa ali ocorre debaixo dos nossos narizes, sem a gente perceber. Às vezes a gente só vê quando chega a estágios extremos como ocorreu em São Paulo em 2006”, relata ele.
Amaral também destaca que Goiás tem uma característica muito relevante, pois os presídios são controlados pelo Estado. “Isso facilita o isolamento de lideranças criminosas. Assim é possível cortar o laço de comando que elas exercem dentro da cadeia e isso reflete inclusive nos índices de segurança das ruas “, diz o promotor.
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