Os governos estaduais, municipais e federal, organizam as suas finanças através das suas contabilidades semelhantes as empresas privadas e públicas. Com isso apuram-se as receitas, despesas e o resultado final de um determinado período. Para as empresas, a diferença entre receita e despesas denomina-se resultado operacional, conhecido também como EBITDA (excluindo a depreciação) e para a contabilidade pública, denomina-se resultado primário (superávit ou déficit). Outro conceito importante é que os juros pagos pelas empresas são deduzidos do EBITDA, bem como os impostos sobre o lucro, e se calcula o resultado líquido do exercício, já na contabilidade pública os juros pagos aos detentores dos títulos da dívida são subtraidos do resultado primário calculando-se o resultado nominal (superávit ou déficit).
Na contabilidade pública o superávit nominal o governo retira dinheiro da economia, ao contrário, o déficit nominal ele transfere dinheiro para a economia. Dependendo do ciclo econômico tanto uma ou outra estratégia pode beneficiar a economia, ou seja, superávit em uma economia aquecida ou um déficit em uma economia estagnada, sem crescimento, trata-se da política macroeconômica de um país.
Expostos os conceitos acima, na última segunda feira, dia 29 de janeiro de 2024, o governo federal divulgou o seu resultado primário de 2023. Houve um déficit primário de R$ 230,5 bi, o equivalente, 2,12% do PIB. Esse é o segundo maior déficit na história da economia brasileira. A consequência advinda desse déficit será um aumento na dívida e mais importante na relação dívida líquida pública/PIB. Esse indicador foi de 57,1% em dezembro de 2022, ou seja, o estoque da dívida líquida em 31/12/2022 foi de 57,1% do valor do PIB. O indicador de 2023 ainda não foi divulgado. Esse é outro indicador que assemelha-se à gestão de empresas. Os analistas acompanham o indicador dívida líquida/EBITDA das empresas, e tem sempre parâmetros, exemplo, empresa com o resultado desse indicador acima de 4 é uma empresa que tem a sua situação financeira contestada pelo mercado. Entende-se como dívida líquida das empresas a dívida bruta deduzida dos ativos em caixa e em aplicações financeiras.
Semelhante a gestão empresarial, o gestor público não pode analisar apenas o resultado primário, bem como, o gestor privado analisar apenas o EBITDA. A causa do crescimento ou redução do endividamento é o chamado resultado nominal, depois de subtrair os juros da dívida do governo. Para 2023 o mercado estima que esse déficit será de 8,9% (2,1% de déficit primário e 6,8% de pagamento de juros da dívida). Como os R$ 230,5 bi de déficit primário representam 2,1% do PIB, podemos calcular que o déficit nominal será da ordem de R$ 976,9 bi. Então é meia verdade quando a imprensa, analistas e economistas dizem que o déficit foi de R$ 230,5 bi, na verdade ele será da ordem de R$ 976,9 bi. Lembrando que os juros que o Brasil está pagando nos últimos anos é o maior do mundo. Portanto, dos R$ 976,9 bi de déficit nominal, 23,6% representam o déficit primário e 76,4% representam juros pagos aos detentores de títulos públicos. Outra meia verdade é a divulgação somente da dívida bruta pública, ocultando a dívida líquida pública. As duas principais diferenças são os ativos referente as reservas cambiais e os títulos emitidos pelo Tesouro em poder do Banco Central do Brasil. O aumento das reservas cambiais em função do volume maior de investimentos de estrangeiros no país tende a reduzir a dívida líquida interna.
Nas apresentações de resultados das empresas os gestores calculam o denominado EBITDA ajustado. O EBITDA ajustado é a exclusão, gerencialmente, para efeito de análise dos investidores, dos efeitos não recorrentes ocorridos no exercício. São despesas ou receitas que ocorrem pontualmente, não foram inerentes aquele exercício analisado ou aconteceram uma única vez e não acontecerão mais. Importante, a contabilidade não é alterada, apenas são dadas as explicações ao mercado investidor. Como analogia, no resultado fiscal de 2023 dois pontos foram observados pelos gestores do Tesouro Nacional como fatos pontuais e não recorrentes do exercício em análise. O primeiro ponto foi o pagamento do passivo referente aos precatórios, dívida do governo em função de decisões judiciais. O valor total foi de R$ 92,4 bi. Essa dívida foi postergada pelo governo anterior com objetivo de melhorar o indicador do resultado primário na sua gestão. No mercado empresarial recentemente vimos isso acontecer na gestão das Lojas Americanas. Outro ponto foi a compensação do ICMS de combustíveis aos Estados em função da redução artificial realizada pelo governo anterior na redução dos preços dos combustíveis em plena campanha eleitoral. Esse valor foi de R$ 21 bi. Portanto, com ajuste de R$ 113,4 (R$ 92,4 bi + R$21 bi) o “‘resultado primário ajustado” foi de R$ 117,2 bi, correspondente a 1,1% do PIB.
Por que é importante essa análise e esse ajuste? Com esse ajuste o mercado pode prever o resultado fiscal do governo com uma probabilidade maior de acerto. O governo estima resultado primário zero para 2024 e o mercado estima déficit primário de 0,8%. Com o déficit de 2,1% realizado 2023 fica mais difícil em projetar um déficit zero ou até de 0,8% para 2024, porém, partindo de um déficit realizado de 1,1% em 2023 o atingimento de uma das duas projeções fica mais factível
Por fim, todas essas discussões acima se resumem em um conceito básico. O que importa é a relação dívida líquida/PIB, para que esse indicador mantenha-se constante e em declínio, basta que os juros reais da economia sejam menores do que o crescimento do PIB e que o resultado primário tenha o menor déficit possível. Infelizmente, o foco da imprensa e dos investidores, é ideológico, eles estão protegendo os seus interesses. Eles cobram do governo que tenha superávit primário, o maior possível, e para isso obriga-o a reduzir despesas com educação, com saúde, com investimentos, com a previdência, com o bolsa família e outras despesas sociais, em prejuízo para toda a sociedade, para poder pagar os juros aos detentores da dívida, que recebem os maiores juros reais do mundo.
Negligencia, propositadamente, que o déficit nominal é causado por apenas 10% pelo déficit primário.
Essa política adotada pelos governos nos últimos anos e defendida com “unhas e dentes” por economistas, analistas e investidores, ditos neoliberais, é a principal causa da concentração de renda no Brasil. No período 2017 a 2022, segundo a FGV, o grupo que representa 1% da população teve sua renda aumentada, em termos reais, em 30%, enquanto o grupo que representa 95% da população não teve a sua renda aumentada em termos reais.
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Marcos Freitas Pereira
Natural de São Paulo, acumula mais de 40 anos de experiência no mercado. Doutorando em Turismo, Mestre em Finanças e economista. Fundador e atual sócio da AM Investimentos e Participações que investe em clínicas médicas, turismo, gastronomia e lazer e entretenimento. Foi também fundador da WAM Brasil maior comercializadora de multipropriedade turismo imobiliário do mundo.