Por Deborah Montenegro
A minissérie da Netflix “Bebê Rena”, inspirada em uma história real e na peça teatral de Richard Gadd, “Baby Reindeer”, conquistou o público com sua trama envolvente e personagens complexos. No entanto, por trás do sucesso, surgem questões sérias sobre a ética na produção audiovisual, a manipulação da realidade e a potencial violação da privacidade dos dados pessoais, protegidos na União Europeia e Reino Unido pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR).
Verdade ou Ficção? A Linha Tênue entre Inspiração e Exploração
“Bebê Rena” narra a história de Donny Dunn (interpretado pelo próprio Richard Gadd), um comediante fracassado e barman de um pub em Londres, cujo ato de gentileza para com a atormentada Martha Scott (interpretada por Jessica Gunning), desencadeia um relacionamento conturbado que se transforma em uma obsessão doentia de Martha por Donny, impactando a vida de ambos e levando Donny a confrontar traumas do passado.
Embora baseada em fatos reais, a Netflix afirma que a série foi ficcionalizada e toma liberdades criativas que distorcem a narrativa original. Afirmam ainda que fizeram de tudo para garantir que as identidades fossem mantidas em segredo.
Essa manipulação da realidade levanta questionamentos sobre os limites da ficcionalização e o respeito pela história real, especialmente quando se trata de pessoas reais e situações delicadas.
A Busca Implacável pela “Verdadeira Martha e a Violação do GDPR
Com o sucesso da série, o público se lançou em uma busca incessante pela mulher que inspirou a personagem Martha, vasculhando suas mensagens de texto e atividades online. Essa busca desenfreada resultou em ataques online, ameaças e insultos à mulher apontada como a “verdadeira Martha”, causando-lhe sofrimento e danos à sua reputação.
A princípio a série “Bebê Rena” parece ter violado o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) ao utilizar dados pessoais suficientes para identificar a mulher real sem o seu consentimento explícito. As informações presentes na série, como sua idade, origens escocesas e residência em Londres, permitem a sua identificação, configurando uma clara infração à lei.
As Exceções e a Responsabilidade da Netflix
O GDPR prevê que os Estados-Membros da União Europeia conciliem, por lei, o direito à proteção de dados pessoais com o direito à liberdade de expressão e de expressão artística. No entanto, deve haver um equilíbrio entre esses direitos.
No caso da “verdadeira Martha”, é questionável se a liberdade de expressão e artística justificam a exposição de sua vida privada e os danos causados à sua imagem. A Netflix, como produtora da série, tem a responsabilidade de garantir o cumprimento da lei e proteger os dados dos indivíduos envolvidos.
Um Debate Necessário: Ética, Privacidade e os Limites da Ficção
“Bebê Rena” serve como um alerta de que a busca por entretenimento não pode se sobrepor à ética e ao respeito à privacidade. A indústria audiovisual precisa se engajar em um debate aberto sobre os limites da ficcionalização, o uso responsável de dados pessoais e as consequências de suas produções na vida real.
Em um mundo onde a realidade se mistura com a ficção e as informações se propagam rapidamente, como podemos garantir que a busca por “verdades” não se transforme em uma caça implacável que causa sofrimento e viola direitos fundamentais?
“Bebê Rena” é um caso complexo que nos convida a refletir sobre os desafios da era digital e a necessidade de um uso responsável da informação. É fundamental que a indústria audiovisual se alinhe às leis de proteção de dados, busque formas éticas de contar histórias reais e priorize o bem-estar dos indivíduos envolvidos.
Deborah Montenegro
Sócia do escritório Anna Bastos Advocacia
Advogada especialista em privacidade e proteção de dados, possui MBA em Compliance Digital pela PUC-Minas e é Lead Implementer de Sistema de Gestão da Segurança da Informação pela ABNT